quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

FESTA DA BAIXA RASA, TRADIÇÃO CENTENÁRIA...

FESTA DA SANTA CRUZ DA BAIXA RASA
 Tradição centenária do Crato

Artigo de Cacá Araújo¹ 
Baseado em relatos populares

Um vaqueiro vindo do Pernambuco atravessava a Floresta do Araripe. Chegando à Baixa Rasa parou para descansar. Exausto, faminto e fraco, resolveu ali ficar, à espera de que alguém passasse e pudesse lhe ajudar, saciando-lhe a fome e a sede. Sua valentia de sertanejo ainda o ajudou a resistir por alguns dias.
O corpo sem forças. O desespero e a agonia já o dominavam quando, mesmo com a vista turva, conseguiu ver um grupo de homens montados em burros, que seguiam em comboio, certamente transportando mercadorias. Tentou gritar, mas sua voz, quase apagada pela tirania da fome e da sede, produziu apenas um fraco sussurro. Não foi ouvido e os homens seguiram seu destino rumo ao Crato.
Repentinamente um dos comboieiros, numa avivada de consciência, disse aos camaradas que lá para trás tinha visto um homem caído bem na beira da rodagem. Resolveram voltar para ajudá-lo, mas ele já havia morrido. Morte silente, testemunhada pelos pássaros e pelas plantas que pareciam chorar diante daquele quadro de desventura. Encontraram-no sobre folhas secas, a cabeça escorada numa raiz de árvore, os olhos abertos ainda reclamando um sopro de misericórdia. Fecharam-lhe os olhos. Libertaram sua alma. Seu corpo foi enterrado ali mesmo, no palco encantado de seu teatro de agonia. Com varas da mata fizeram a cruz que cravaram em sua cova. Isso aconteceu, segundo relatos, nos idos de 1880. Nascia, assim, o mito da Santa Cruz da Baixa Rasa.
O martírio daquele vaqueiro foi divulgado pelo grupo de comboieiros ao povo da região. Tomados pela compaixão e motivados pela forte religiosidade, os moradores dos arredores passaram a frequentar o lugar e rezar por sua alma, a fazer promessas, a suplicar milagres.
São diversas as histórias sobre a origem do mito. Mas o real é que vários milagres são atribuídos à Santa Cruz da Baixa Rasa, dentre eles o atendimento a uma promessa feita por uma senhora, em 1914, quando uma terrível peste espalhou-se por diversos pontos do Nordeste. Ela, com inabalável fé, pediu que a epidemia não chegasse ao Cariri. Foi atendida e o povo da região ficou livre da doença. Essa senhora era conhecida como Vó Pretinha, matriarca da família Estêvão, família que até hoje mantém a tradição de rezar aos pés da Santa Cruz da Baixa Rasa.
Muitas graças foram e são alcançadas e, todo 25 de janeiro, uma grande romaria de devotos acorre ao local, que fica a cerca de 20 quilômetros da cidade do Crato, dentro da Floresta Nacional do Araripe.
Uma clareira aberta no coração da mata virgem. Ventos soprando a ancestralidade de um povo religioso, que ainda tem o privilégio de conviver com a natureza divina, mãe de todas as crenças e mitos e desejos e esperanças. Um oráculo nordestino onde os filhos da terra procuram respostas que lhes livrem da ação implacável da esfinge que a todo tempo lhes apavora com a possibilidade de condenação ao inferno. A Santa Cruz da Baixa Rasa é magia matuta. É a busca incansável da felicidade. É o céu que se insinua aos impuros que buscam a clemência de Deus.
Purgar os pecados, pagar promessas, cantar, rezar pela cura e por querer ser feliz. Aqui, instala-se um ritual misto de sagrado e de profano: missa, devotos, benditos, vaqueiros, bandas cabaçais, reisados, maneiro pau, penitentes, cantadores de viola, políticos de matizes diversos, pesquisadores, curiosos. É o espírito da devoção e da festa, como no princípio, onde o sagrado e o profano eram um só.

¹Cacá Araújo (texto e foto) é professor, dramaturgo e folclorista, diretor da Cia. Brasileira de Teatro Brincante, radicado em Crato-CE.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Cristovam Buarque sobre o "ano da Copa". (Senador/PDT)


Feliz 2015. 
Uma Isca Intelectual de Cristovam Buarque sobre o "ano da Copa".

Algo vai mal quando um país que precisa enfrentar seus problemas chama de ano da Copa um ano de eleições presidenciais. É o que está a acontecer com o Brasil.

Cinquenta mil brasileiros são assassinados por ano, outros cinquenta mil morrem no trânsito e outros 515 mil estão presos; a droga compromete a vida, a capacidade de trabalho e o futuro de centenas de milhares de nossos jovens; metade da população não tem acesso a água e esgoto; e a economia se desindustrializa.

Quanto ao potencial científico e tecnológico estamos cada dia mais para trás em relação ao resto do mundo; as avenidas estão atravancadas; a educação apresenta um retrato vergonhoso e uma brutal desigualdade; os hospitais públicos estão caóticos; e a natureza está sendo degradada.

No país, temos 13 milhões de adultos que não diferenciam as letras e outros 40 milhões sem capacidade de leitura; a produção não dispõe de logística eficiente para sua distribuição; e cinquenta milhões de brasileiros vivem graças à (felizmente) ajuda do programa Bolsa Família. Apesar disso, em vez de propostas dos presidenciáveis para 2015, estamos preocupados se os estádios da Copa ficarão prontos em 2014.

Isto se explica por nossa paixão pelo futebol, mas também pela descrença com a política, sobretudo porque não há candidatos propondo programas que empolguem a população. Até aqui, todos são tão iguais no comportamento e na falta de propostas diferenciadas. Assim, sobra apenas o grito de Viva a Copa.

Os candidatos ainda não apresentaram propostas para transformar a viciada economia brasileira de exportadora de bens primários, inclusive, alguns de indústria mecânica, em produtora de bens de alta tecnologia; nem mostraram como vão fazer o desenvolvimento ser sustentável ecologicamente e justo socialmente.

Não há propostas para o cerco em que vivem os brasileiros por causa da violência urbana provocada por desesperados com suas pobrezas diante da imensa guerra ao redor, nem para enfrentar a crescente mobilização de desiludidos, movidos pelas redes sociais, para promoverem atos de bloqueio de trânsito, queima de veículos e quebra de vidraças.

Nenhum candidato propôs ações para emancipar nossos pobres da necessidade de ajuda mensal.

Nenhum dos presidenciáveis disse como vai conduzir o Brasil no rumo da erradicação do analfabetismo e como garantir educação de qualidade igual para todos. Nem qual será o salário dos professores ao fim de seu mandato, nem como eles serão selecionados e avaliados.

Nesse quadro de “des-eleição”, o ano de 2014 será o ano da Copa. No primeiro de janeiro de 2015, poderemos acordar com a sensação de que tudo continuará no mesmo rumo de um país que cresce se desfazendo.

Por isso, só nos resta desejar um Feliz 2014 para cada um dos brasileiros e um Feliz 2015 para o Brasil.

Cristovam Buarque é senador (PDT-DF).