CRÔNICA PARA AS MÃES
Ronaldo Correia de Brito
Mamãe morreu no dia 16 de maio. Ela esperou que eu retornasse de uma viagem à França, descansasse duas noites e então se encantou. Um zelo materno que foi a marca de sua vida. Seria doloroso não participar da cerimônia de sepultamento de pessoa tão amada. Os rituais ajudam o homem a nascer, a deixar a infância, a ingressar na vida adulta, a casar-se e a aceitar a morte.
Num único mês meu pai perdeu dois irmãos e a esposa. Morrer é um costume que sabe ter toda gente, escreveu o argentino Jorge Luis Borges. A idade nos empurra às separações. Até os quinze anos eu possuía tios bisavós, tios avós e duas dezenas de tios no primeiro grau. Numa única cidade dos Inhamuns, Parambu, moravam seis tios irmãos de minha avó paterna, que eu conhecia apenas pelos nomes extravagantes. Três gerações me precediam, porém foram caindo todos, à direita e à esquerda e em todos os lugares, como no poema do cearense Gerardo Mello Mourão.
Enquanto desciam Dona Ritinha ao túmulo, gritei versos do peruano Cesar Vallejo e pedi vivas e palmas para a mulher extraordinária.
“E eu te digo: quando alguém vai embora, alguém permanece. O lugar por onde um homem passou nunca mais será ermo. Somente está solitário, de solidão humana, o lugar por onde ainda nenhum homem passou”.
Mesmo partindo, Dona Ritinha fica, anda pela casa de um modo que nunca havíamos sentido antes. Se reproduz em nossos gestos, no jeito como rimos, em atitudes e vontades. É impossível não reconhecê-la na filha que arruma os pratos para o almoço, ou na caligrafia do neto. E não é apenas a lembrança de mamãe que continua pela casa, porém ela mesma.
Percorri de carro os 600 quilômetros que separam o Recife do Cariri, na companhia de minha esposa e dois filhos. No caminho, revendo a paisagem que fotografei em 44 anos de idas e vindas, inventariava ganhos e perdas. A paisagem invernosa, de um verde enganoso no ano seco, as carcaças de animais, as casas abandonadas e arruinadas, as cidades crescidas, os caminhões, as motos e as pessoas aceleradas nos postos de gasolina conspiram a favor de mudanças. Sim, tudo virou mesmo cidade e periferia de cidades, um novo caos.
E eu contemplo sentindo que nada posso fazer contra essa ordem que o mundo adquiriu, assim como posso bem pouco contra a ordem da doença e da morte. Procuro relaxar o corpo no banco do carro, respiro fundo e vejo em torno. Ver não faz mal aos olhos.
Aos 61 anos, compreendi a importância do Crato em minha vida. O vale cercado pela Chapada do Araripe de repente se abre em verde e azul, numa beleza arrebatadora. Parece um imenso útero que nos acolhe e alimenta. Espoliado, queimado, desmatado, cheio de aberrações arquitetônicas, os rios transformados em esgotos, as nascentes fechadas em tanques de cimento, os sítios e as lavouras abandonados, o barulho sufocando o silêncio, mesmo assim, o Cariri impressiona por sua grandeza. A terra onde minha mãe nasceu, aonde cheguei estrangeiro com cinco anos, vindo do sertão dos Inhamuns, esse lugar do meu primeiro exílio é também minha casa, como o útero materno. O Crato é a mãe. Foi isso que compreendi chorando, na tarde em que a fechavam numa cova de concreto.
Meus tios sobreviventes já não sabem abençoar, se empulham quando estendo a mão e peço: a bênção! Olham para os lados, esquecidos da reposta mágica. Bem diferente de quando o menino de dezesseis anos deixou a casa do pai. As pessoas parecem agitadas por algum transtorno. Deve ser a presença incômoda da morte, a consciência de um fim que o sol quente lá fora nega.
Mais tarde, quando todos os ritos foram cumpridos e sentamos em cadeiras em volta da cova, olhando a serra azul longe e escutando os passarinhos, nessa hora quase noite, parecemos apaziguados e felizes. Ninguém pensa em ir embora. Pra que lugar? Sei que restam apenas cinco tios e o pai acima de mim. Depois que esses também morrerem, ocuparei a fila da frente.
Penso nisso e me acalmo. Perscruto o silêncio sem medo.
PS: No dia das mães estava na França, a trabalho. Vi a edição de O POVO e senti vergonha de que minha crônica fosse a única que não celebrava as mães. Escrevi-a antes de viajar e nem havia lembrado a data. Agora, escrevo como órfão.
FONTE:http://www.opovo.com.br/app/colunas/ronaldocorreiadebrito/2013/05/25/noticiasronaldocorreiadebrito,3062122/cronica-para-as-maes.shtml
Ronaldo Correia de Brito
Mamãe morreu no dia 16 de maio. Ela esperou que eu retornasse de uma viagem à França, descansasse duas noites e então se encantou. Um zelo materno que foi a marca de sua vida. Seria doloroso não participar da cerimônia de sepultamento de pessoa tão amada. Os rituais ajudam o homem a nascer, a deixar a infância, a ingressar na vida adulta, a casar-se e a aceitar a morte.
Num único mês meu pai perdeu dois irmãos e a esposa. Morrer é um costume que sabe ter toda gente, escreveu o argentino Jorge Luis Borges. A idade nos empurra às separações. Até os quinze anos eu possuía tios bisavós, tios avós e duas dezenas de tios no primeiro grau. Numa única cidade dos Inhamuns, Parambu, moravam seis tios irmãos de minha avó paterna, que eu conhecia apenas pelos nomes extravagantes. Três gerações me precediam, porém foram caindo todos, à direita e à esquerda e em todos os lugares, como no poema do cearense Gerardo Mello Mourão.
Enquanto desciam Dona Ritinha ao túmulo, gritei versos do peruano Cesar Vallejo e pedi vivas e palmas para a mulher extraordinária.
“E eu te digo: quando alguém vai embora, alguém permanece. O lugar por onde um homem passou nunca mais será ermo. Somente está solitário, de solidão humana, o lugar por onde ainda nenhum homem passou”.
Mesmo partindo, Dona Ritinha fica, anda pela casa de um modo que nunca havíamos sentido antes. Se reproduz em nossos gestos, no jeito como rimos, em atitudes e vontades. É impossível não reconhecê-la na filha que arruma os pratos para o almoço, ou na caligrafia do neto. E não é apenas a lembrança de mamãe que continua pela casa, porém ela mesma.
Percorri de carro os 600 quilômetros que separam o Recife do Cariri, na companhia de minha esposa e dois filhos. No caminho, revendo a paisagem que fotografei em 44 anos de idas e vindas, inventariava ganhos e perdas. A paisagem invernosa, de um verde enganoso no ano seco, as carcaças de animais, as casas abandonadas e arruinadas, as cidades crescidas, os caminhões, as motos e as pessoas aceleradas nos postos de gasolina conspiram a favor de mudanças. Sim, tudo virou mesmo cidade e periferia de cidades, um novo caos.
E eu contemplo sentindo que nada posso fazer contra essa ordem que o mundo adquiriu, assim como posso bem pouco contra a ordem da doença e da morte. Procuro relaxar o corpo no banco do carro, respiro fundo e vejo em torno. Ver não faz mal aos olhos.
Aos 61 anos, compreendi a importância do Crato em minha vida. O vale cercado pela Chapada do Araripe de repente se abre em verde e azul, numa beleza arrebatadora. Parece um imenso útero que nos acolhe e alimenta. Espoliado, queimado, desmatado, cheio de aberrações arquitetônicas, os rios transformados em esgotos, as nascentes fechadas em tanques de cimento, os sítios e as lavouras abandonados, o barulho sufocando o silêncio, mesmo assim, o Cariri impressiona por sua grandeza. A terra onde minha mãe nasceu, aonde cheguei estrangeiro com cinco anos, vindo do sertão dos Inhamuns, esse lugar do meu primeiro exílio é também minha casa, como o útero materno. O Crato é a mãe. Foi isso que compreendi chorando, na tarde em que a fechavam numa cova de concreto.
Meus tios sobreviventes já não sabem abençoar, se empulham quando estendo a mão e peço: a bênção! Olham para os lados, esquecidos da reposta mágica. Bem diferente de quando o menino de dezesseis anos deixou a casa do pai. As pessoas parecem agitadas por algum transtorno. Deve ser a presença incômoda da morte, a consciência de um fim que o sol quente lá fora nega.
Mais tarde, quando todos os ritos foram cumpridos e sentamos em cadeiras em volta da cova, olhando a serra azul longe e escutando os passarinhos, nessa hora quase noite, parecemos apaziguados e felizes. Ninguém pensa em ir embora. Pra que lugar? Sei que restam apenas cinco tios e o pai acima de mim. Depois que esses também morrerem, ocuparei a fila da frente.
Penso nisso e me acalmo. Perscruto o silêncio sem medo.
PS: No dia das mães estava na França, a trabalho. Vi a edição de O POVO e senti vergonha de que minha crônica fosse a única que não celebrava as mães. Escrevi-a antes de viajar e nem havia lembrado a data. Agora, escrevo como órfão.
FONTE:http://www.opovo.com.br/app/colunas/ronaldocorreiadebrito/2013/05/25/noticiasronaldocorreiadebrito,3062122/cronica-para-as-maes.shtml